Lição de Medo



Considere fazer parte de um grupo que se encontra exposto às mais exigentes situações da natureza. Acrescente a isto estar a quase 2.000 km da paisagem mais próxima de terra conhecida. É isto mesmo, está – juntamente com outros, à deriva no mar. 
O instinto de todos é de medo. E a cada um esse medo tem significâncias diferentes. Aqui, como criança, encaramos o nosso medo com fraqueza, mas que na verdade é algo que somente a pessoa vê; e que combate e que as vezes supera.
E se o olhássemos de um novo ângulo? De uma nova maneira? Se o víssemos como um ato surpreendente da imaginação, algo que pode ser tão profundo e perspicaz quanto o de narrar histórias? A sua, por assim dizer.
Quando criança, ficava aterrorizado com o silencio dentro de casa. Os passos que soavam na rua era como se estivessem a me procurar dentro de minha própria casa. Assustador.
Crianças e sua vívida imaginação. Mas assim que crescemos deixamos estas visões pra trás. Descobrimos que não há monstros escondidos debaixo da cama, e muito menos que nem toda pessoa que anda pelas ruas invadem as nossas casas.  
Mas, carregamos para a vida adulta nossas mentes criativas, e o medo existente em cada um fica aguardando ser despertado em algum lugar de nossa mente.
Assim fica a questão de como podemos aprender com o medo.

Voltemos ao ponto proposto no início. À deriva e com parcos recursos a bordo, se faz necessário criar um plano de sobrevivência. As opções no meio daquela imensidão do nada e improvisados numa embarcação capenga, não deixava muito espaço pra planejamento.
Estão ali tão distantes da terra quanto possível em qualquer outro lugar do planeta. Você e seu grupo, como experientes navegadores, sabem que a ilha mais próxima dista a 1.200 quilômetros de distância.  Mas, na infância de muitos, estas ilhas carregam o estigma de abrigarem nativos que os rumores descreviam como comedores de carne humana. Sim, eram terríveis canibais.  Já se viam, exaustos, desembarcando na ilha, para em seguida serem cozinhados para o jantar. Uma outra opção que descartavam estas ilhas seria seguir um pouco mais adiante, mas a rota exigiria terem de enfrentar terríveis tempestades e mar revolto exatamente nesta época do ano. As chances – com a embarcação terrivelmente avariada, não deixava dúvidas para o desfecho do destino de todos.
Resta somente uma última opção. Seguirem mais longe com o auxílio de vento favorável para aportarem em terras seguras. O problema seria a distância: quase 3.000 km de navegação. Isso seria exigir demais das provisões a bordo e do barco. 
Portanto as opções eram: ser comido por canibais, ser abatido por tempestades ou morrer de fome antes de atingir algum plano de terra.  O júri – na cabeça de cada um, era formado pelo medo que traziam desde sempre e que se faz ouvir por sonoros gritos.  

Que tal se nomeássemos esses muitos medos por “histórias”? Pois assim é o medo - por você pensar nele. Uma história sendo criada. Ora se ele existe o “medo”, deve – obrigatoriamente, ter surgido a partir de uma história, mesmo que de forma não intencional tenha por ela sabido. Está na síntese da formação humana. Lembram da cantiga popular “nana neném que a cuca vem pegar”
A arquitetura do medo está ali desde muito cedo implantada.  E como todas as histórias, os medos têm personagens.  Em nossos medos, os personagens somos nós, travestidos em distintos modos.  Medos também têm enredos. Têm começo, meio e fim.  Você não embarca em avião. Você decola junto com avião. Aí você cria o enredo de falha de motor.  Independente da realidade você irá viver – por antecipação, cada pedacinho destas imagens aterradoras.
Voltando ao nosso/seu problema decisório. Na primeira opção de sobrevivência, você imagina o canibal, sente o dente afundando em sua carne junto do chiado de sua pele assando sobre uma fogueira. Medos também têm suspense. Você pode se imaginar, se libertando e muitos canibais salivando correndo em sua direção. Assim como literatura, as questões do medo se tornam relevante pra que você decida a narrativa do próximo capítulo. E o medo vai induzir você a focar sua atenção nesses detalhes.
Em outras palavras, nossos medos nos fazem projetar-nos à frente do tempo; e essa viagem mental no tempo é mais uma coisa que medos têm em comum com a narração literária.  

Como escritor, posso afirmar que um evento isolado pode determinar e afetar toda a narrativa. Assim ocorre com o medo.  Um medo leva a outro que sempre leva a outro.
Afinal, o que vê as nossas mentes? Lembram dos passos na rua que me assustavam? Eu já imaginava o dono destes passos a e esconder em algum canto escuro da casa. Eu me via a ir ao banheiro e ser atacado por este invasor. Ao mesmo tempo ele abria a porta para outros. A coisa não tem limite, somente desdobramentos de episódios e temporadas; como numa série NetFlix.
Cada ser da raça humana é um especialista em contar histórias; são autores dos seus próprios medos. E como autor, somos também o leitor desses medos que de forma ininterrupta visitam e atormentam as nossas vidas. Como empreendedores do medo, todos não fracassam; bem sucedidos, construímos a paranoia produtiva do medo.
Em vez de descartar nossos medos, nós o estudamos e os deslocamos para entrarem em ação no momento de maior fragilidade do protagonista. E adivinhem que é ele. Exato: você mesmo.  Dessa forma, seus piores temores tornam-se realidade. Você é um autor-leitor de excelente eficácia.  
Então; podemos distinguir entre os medos que valem a pena ouvir entre todos os demais que inventamos?   
Bem, voltemos então aos planos do problema proposto do grupo ao qual pertence. Após muita deliberação, tomam uma decisão: evitar os pretensos canibais e as prováveis tempestades e enveredar pela rota mais distante.  Decisão tomada e após longas semanas que se somam meses, e sem comida e distante da terra, os homens começam a se alimentar dos mortos. Os minguados e alucinados sobreviventes – dentre eles, você, são salvos por um navio que passava - vindo das ilhas onde acreditavam que existiam ferozes canibais, mas que na verdade eram habitadas por pessoas aprazíveis e hospitaleiras.
Como poderiam ter sido atormentados por esse medo sabendo que a extrema urgência da fome se abateria entre todos, assim com a sede? 
O romancista Vladimir Nabokov disse que o melhor leitor tem uma combinação de dois temperamentos muito diferentes:  o lúdico e o científico.  Um bom leitor tem uma paixão de artista, uma possibilidade de ser apanhado na história, mas, com a mesma importância, o mesmo leitor também precisa da frieza de julgamento de um cientista, que age para acalmar e complicar as filhas intuitivas do leitor à história.  Como vimos no problema proposto, você e seu grupo não tiveram problema com a parte criativa onde imaginaram uma série de cenários horríveis. O problema do grupo é que deram ênfase na imaginação da parte da história errada.  Voltaram para a promoção da parte mais sinistra. Naquela que seria a opção mais fácil para uma viagem relativamente tranquila que os levariam às ilhas onde “instalaram” os canibais.  Mas, se ao contrário, tivessem dado voz à parte científica teriam sido capazes de ler os seus medos com mais frieza de julgamento. Desta forma arranjaram os ouvidos a um conto criativo de extremo medo, em abandono de um menos violento, mas mais provável para uma completa inanição que se tornou canibalesca.

Se tentássemos ler nossos medos, e deixássemos com menos intensidade sermos influenciados pelo mais indecente entre eles, notaríamos algumas coisas sutis que nos levasse a ser mais condescendes com nossas pequenas decisões.  Lidos de maneira correta, os nossos medos são um dom da imaginação, um tipo de clarividência diária, uma forma de antever o que poderia ser o futuro quando ainda há tempo para influenciar como o futuro se desenrolará.  Adequadamente lidos, os medos podem nos oferecer algo tão precioso como as obras de literatura favoritas:  um pouco de sabedoria, um pouco de perspicácia e uma versão da coisa mais ardilosa -  a verdade. 

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